sábado, janeiro 06, 2007


Cariniana

Vigoroso, proeminente e pitoresco vegetal, verticalizado em meio aos arranha-céus, que de fato arranham-o e conferem à idílica paisagem de outrora uma concorrência estrépita em meio a amontoados de pedra e de vidro. O monstro de energia em questão, um prodígio natural desta Terra Brasilis, é um Jequitibá de cerca de 180 anos e por volta de 50 metros de altura.

As vísceras miasmáticas

A colheita de 1820 deveras prometia fartura, todos da fazenda Aurora animavam-se com sua proximidade, dos capatazes aos recém-chegados imigrantes observava-se uma sutil tranqüilidade. Naquele ano a safra seria suficientemente boa para que a fazenda despontasse mais uma vez no cenário nacional como uma das grandes produtoras de café.
Vicenzo chegara à América com uma bagagem de sonhos misturada com sua ânsia por novas descobertas. De fato, ao descer do navio no porto de Santos até a chegada à Aurora, tudo o que via lhe causava um encantamento onírico. Todas as suas viagens anteriores a essa não passavam de pequenas incursões dentro de fazendas de sua região natal, Campo Basso na Itália, a procura de esbeltas camponesas. A imensidão desse novo lugar, que ele começava a conhecer, parecia fantasiosa.

O vitelo

Sua sombra trazia calmaria. Mário perambulava entre devaneios nos quais mergulhava profundamente na terra avermelhada e alcançava numa expedição gloriosa o último fio de cabelo da robusta raíz centenária. Imaginava consigo quem seria a mãe de estonteante beleza. O Jequitibá significava muito para ele, pois fazia com que vislumbrasse um recôndito resquício de ventos passados. Sabia que o mesmo chão em que ele, os infindáveis prédios, ruas e transeuntes pisavam agora, fora uma fazenda tragada pelo tempo e deglutida pela insensatez de uma família arruinada. Essa reflexão causava-lhe estranheza. A mera sensação de tocar um passado quase esquecido lhe entorpecia a ponto de remeter-lhe estranhas náuseas entre momentos de êxtase.

As vísceras miasmáticas

Vicenzo tinha 29 anos quando encantado chegou ao Brasil, e 33 quando desencantado surtou. Seu espírito jovial não compartilhava da infame semi-escravidão na qual ele se via enjaulado. Sem dinheiro para poder voltar à Itália ou então para poder realizar novas viagens, sucumbia-se no desespero, ímpio de que conseguiria escapar de seu enfadonho destino. O aviltante tratamento recebido por ele e por seus compatriotas lhe enojava cada dia mais. Desde que chegara ao Brasil todas as safras da lavoura de café haviam sido abundantes, mas isso não se refletia no pagamento aos imigrantes. Não se contentava em ter esperança, e esta lhe causava ira quando observada nos outros colonos, que acreditavam que com a força de seus esforçados trabalhos conseguiriam superar as adversidades de suas novas vidas.

O vitelo

Mário, soturnamente deflagrado contra seu tempo prodigioso, consternado pela amálgama da ilusão amorosa e pela nostalgia cáustica que sempre lhe acompanhara, buscava refúgio em contato com à soberba árvore. Um refúgio em meio a uma aglomerada solidão de gente. Um baluarte, que principalmente nos meses de novembro a dezembro, completamente florido lhe trazia ainda mais conforto. Mário morava, desde a sua última separação, num prédio em frente ao Jequitibá. Fora uma descoberta proveitosa aquela localização, uma vez que, como músico, à árvore lhe emprestara inúmeras inspirações para suas composições e era uma cena recorrente entre os moradores do bairro, observá-lo tocar seu violino embaixo da sombra do gigante verde. E tornou-se corriqueiro também que o classificassem como “o louco seresteiro”.

As vísceras miasmáticas

Certo dia fatigado, atormentado e surtado, Vicenzo resolveu empreender uma aventura à altura de suas aspirações. De punho a uma garrucha recém adquirida, invadiu a casa grande da fazenda e após vociferar injúrias contra o dono e sua família castigou-llhes friamente. Eram então cinco corpos ao chão. Em sua promíscua fuga ainda teve tempo de cometer um último crime. Junto ao tronco de um Jequitibá de pouco mais de 15 anos em meio ao cafezal (que servia apenas para demarcar o limite entre uma lavoura e outra) encerrou sua breve passagem com um tiro certeiro contra seu peito inundando de sangue a terra.

As estripadas vísceras miasmáticas

Vigoroso, proeminente e pitoresco vegetal, verticalizado em meio aos arranha-céus, que de fato arranham-no e conferem à idílica paisagem de outrora uma concorrência estrépita em meio a amontoados de pedra e de vidro. O monstro de energia em questão, um prodígio natural desta Terra Brasilis, é um Jequitibá de cerca de 180 anos e por volta de 50 metros de altura.

O Vitelo

O estandarte da ferida estigmatizada parecia querer arrebanhar novos corações. Após 165 anos do incidente da fazenda, a árvore presenciaria novo desconforto. Com a ajuda de uma escada em meio a uma noite iluminada pela erma lua, Mário trepava por entre galhos carregando seu violino. Pôs-se a tocá-lo e a ensaiar uma última e melíflua sonata para que ao fim pudesse silenciosamente atirar-se rumo a um vôo brevemente ascensional e uma vertiginosa queda junto ao solo.
marinovic